por Richard Simonetti, richardsimonetti@uol.com.br
Certamente, você concordará, amigo leitor, que o verbo mais usado nas orações que se erguem da Terra ao Céu é pedir.
Para a maioria dos fiéis, preces são longas listagens, como quem contata um supermercado do Além, esperando que Deus providencie a entrega das encomendas em domicílio.
Obviamente, não é proibido o petitório.
Afinal, Deus é Nosso Pai!
Impensável impedir o filho de buscar seu genitor, a rogar-lhe a solução de seus problemas ou o atendimento de suas necessidades.
Não obstante, há um princípio básico que devemos observar, a fim de não reclamarmos que o Todo-Poderoso é um pai negligente, que faz ouvidos moucos aos nossos anseios: evitemos solicitar milagres.
Alguns exemplos:
- Passar em vestibular sem estudar.
- Conquistar emprego de alto nível sem especialização profissional.
- Prosperar num negócio sem experiência comercial.
- Conquistar a paz sem disciplinar as emoções.
- Pacificar o lar sem cultivar compreensão.
- Conquistar amigos sem exercitar simpatia.
- Conservar o bom ânimo sem a luz de um ideal.
- Ser feliz sem realizar a bondade.
Também não vai isentar-nos de situações que nós mesmos planejamos ao reencarnar:
- Família difícil…
- Convivência com desafetos…
- Deficiência física…
- Doença crônica…
- Problemas financeiros…
- Dificuldades variadas…
Na espiritualidade, com a consciência desperta e a visão plena de nossas imperfeições e fraquezas, nossa postura é a do devedor ansioso, que pretende resgatar urgentemente seus débitos a fim de, digamos, limpar seu nome no tribunal da consciência.
Cogitávamos de múltiplos males e dissabores, lutas e dores, pretendendo resolver rapidamente pendências cármicas, a inibirem nossa ascensão às paisagens celestiais.
Benfeitores espirituais que nos assistiam operaram drásticos e misericordiosos cortes nessa listagem de desgraças, porquanto não suportaríamos enfrentá-las por inteiro.
Segundo um princípio elementar de justiça, Deus não nos impõe provações superiores à nossa resistência.
Jamais o peso da cruz será incompatível com nossa musculatura espiritual.
Ocorre que, em aqui chegando, com a visão precária dos olhos carnais, e perdendo o contato com as realidades espirituais, esquecemos as boas intenções.
Resultado: passamos a imaginar que houve algum equívoco dos programadores celestes, impondo-nos um trambolho que se nos afigura impossível de carregar. E nos entregamos a ardentes orações, implorando a Deus que o retire de sobre nossos ombros.
Há duas histórias interessantes e ilustrativas.
* * *
A primeira diz respeito a um homem insatisfeito com sua cruz. Pesava demais. Não lhe parecia razoável nem justo.
Vivia reclamando. Orava sensibilizado, a reivindicar madeiro mais leve.
E tanto insistiu, agoniado, que lhe foi oferecida a oportunidade de efetuar substituição.
Sob orientação de mentores espirituais, examinou imenso mostruário onde havia cruzes de tamanho, formato e peso diversos. Escolheu cuidadosamente a que lhe pareceu mais adequada.
Quando a recebeu verificou, assombrado, que era exatamente igual à que carregava. O mesmo tamanho, formato e peso.
Digamos que a cruz de nossos dissabores guarda compatibilidade com nossas forças, bem mais leve do que merecemos, bem menos contundente do que solicitamos.
Se assim não nos parece é porque a carregamos sobre ombros nus. É o atrito que produz doridos ferimentos.
Ficará bem ameno se colocarmos um anteparo: a almofada do Bem, em exercícios de amor pelo semelhante e fé em Deus.
Com essa abençoada proteção seguiremos tranquilos, cumprindo sem maiores dificuldades nossa programação existencial.
* * *
A segunda história nos fala de um homem muito esperto.
Reclamando que o peso do madeiro o incomodava, cortou um pedaço na base. Ficou mais leve.
Após algum tempo de caminhada, começou a pesar novamente.
Não teve dúvida – cortou outro pedaço e seguiu tranquilo.
Ao chegar ao final da longa jornada, verificou algo que o deixou estarrecido: o acesso às regiões celestiais passava por um abismo profundo, com a largura de dois metros e meio, pouco menor que o cumprimento da cruz original, que deveria ser usada como uma ponte.
Ao reduzi-la, ficou sem acesso.
Muita gente vai podando a cruz pelo caminho.
O chefe de família que abandona esposa e filhos, por sentir-se cerceado em sua liberdade…
O comerciante que apela para a desonestidade a fim de superar dificuldades econômicas.
A mulher que parte para o aborto a fim de livrar-se de um filho indesejável...
A jovem que se prostitui para furtar-se à pobreza.
São, simbolicamente, cruzes decepadas, que em princípio até facilitarão a caminhada, mas resultarão em graves problemas no retorno à vida espiritual.
Esses podadores da cruz não terão condições para transpor os abismos umbralinos, as regiões purgatoriais, onde, segundo Jesus, há choro e ranger de dentes.
* * *
Há os que estão dispostos a carregar o madeiro redentor sem fugas, sem desvios.
Não pedem, em oração, que o peso seja menor, nem pretendem que seja reduzido.
Acertadamente, rogam forças, coragem, equilíbrio…
Não obstante, saem da oração sem aqueles benefícios.
Imaginam uma falha de comunicação.
O canal de ligação com o Céu parece bloqueado.
Como superar o problema?
É Jesus quem nos ensina, ao proclamar (Mateus, 5:23-24):
Se, portanto, quando fordes depor vossa oferenda no altar, vos lembrardes de que vosso irmão tem qualquer coisa contra vós, – deixai a vossa dádiva junto ao altar e ide, antes, reconciliar-vos com o vosso irmão; depois, então, voltai a oferecê-la.
Faziam parte do culto judeu as oferendas, situadas como sacrifícios. O ofertante despojava-se de algo em favor do Templo. Podia ser dinheiro, utensílios, vegetais, animais, aves...
Jesus respeitava aquelas tradições, embora não as observasse, já que sua proposta era diferente, conforme explicou à mulher samaritana (João, 4:23-24), dizendo que Deus é Espírito e em espírito deve ser adorado.
O culto a Deus deve ser despido de ofícios e oficiantes, ritos e rezas. É um ato do coração, do filho que se comunica com seu pai.
Mas o Mestre deixa bem claro que essa ligação ficará inviável se o nosso telefone, o coração, estiver bloqueado por mágoas e ressentimentos.
Talvez seja impossível a reconciliação, pelo menos em princípio, se a outra parte não está disposta, mas que desbloqueie a linha aquele que ora.
Em O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo X, diz Kardec:
O cristão não oferece dons materiais, pois que espiritualizou o sacrifício.
Com isso, porém, o preceito ainda mais força ganha.
Ele oferece sua alma a Deus e essa alma tem de ser purificada. Entrando no templo do Senhor, deve ele deixar fora todo sentimento de ódio e de animosidade, todo mau pensamento contra seu irmão.
Só, então, os anjos levarão sua prece aos pés do Eterno.
Esse entrar no templo do Senhor, a que se refere Kardec, é o exercício da oração, fazendo indispensável oferenda espiritual: uma alma livre de ressentimentos, ódios e rancores.
O raciocínio é perfeito.
Como pedir ajuda a um pai, desejando mal ao seu filho?
* * *
A pretensão de uma comunhão com Deus, sem depurar o coração de sentimentos rancorosos, ante a luz do amor, é uma contradição lamentável, que perpetua no Mundo as lutas armadas, as guerras, o morticínio…
No Oriente Médio, de insuperáveis conflitos entre árabes e judeus, a se matarem uns aos outros, vemos, surpreendentemente, os dois povos imbuídos de religiosidade.
Procuram as mesquitas e as sinagogas.
Oram, contritos, em favor da paz.
Mas pretendem a paz que se estabeleça a partir da destruição do inimigo, coração repleto de ódio, insuperável desejo de vingança.
O árabe não pensa no judeu como um filho de Deus, irmão seu, e vice-versa.
É como se os habitantes de terra inimiga fossem filhos do demônio, que devem ser exterminados.
É essa mentalidade que perpetua agressões e retaliações mútuas e incessantes, dispostos os contendores ao sacrifício da própria vida em favor do aniquilamento dos adversários.
Não conseguem assimilar um princípio elementar:
Violência gera violência.
Se desejamos a paz é preciso desarmar o espírito.
Ou os beligerantes reconhecem isso ou o morticínio continuará, até que se aniquilem mutuamente, culminando com a lamentável paz dos cemitérios.
* * *
Frequentemente, nos serviços de atendimento fraterno, conversamos com pessoas que se dizem amarguradas, doentes, infelizes, em virtude de problemas familiares, profissionais, existenciais, em permanentes conflitos.
Atendemos uma senhora com problemas de saúde. Foram mobilizados os recursos do Centro, em seu benefício, envolvendo passes, água magnetizada, vibrações, reuniões públicas, sessões de desobsessão.
Recomendamos-lhe, ainda, leituras edificantes com base nos princípios espíritas, oração, reflexão…
Nada deu resultado.
Numa das reuniões, em que seu nome era lembrado para o trabalho de vibrações, um mentor espiritual explicou que o problema não seria solucionado enquanto ela não perdoasse o esposo.
Transmitimos o recado. A infeliz senhora chorou muito e nos confessou que a informação estava correta. Guardava grande mágoa do marido, que não a tratava com a devida consideração e se envolvera, tempos atrás, numa aventura extraconjugal.
Com seis filhos ainda adolescentes, vivia na inteira dependência dele, mas não o perdoava, embora reconhecendo que ele era bom pai e não deixava faltar nada à família.
O rancor inibia suas orações e neutralizava os recursos espirituais mobilizados em seu benefício.
Explicamos-lhe que o perdão não era nenhum favor ao companheiro. Apenas o indispensável para que se equilibrasse.
Infelizmente, amigas desavisadas, mais amigas das fofocas, a perturbavam com a ideia de que estava certa em sua postura rancorosa.
Certamente nunca leram ou, se leram, não entenderam uma observação de Jesus (Mateus, 5:20):
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.
A justiça dos escribas e fariseus é a do olho por olho, dente por dente, instituída por Moisés, que manda revidarmos ao mal que nos façam.
A proposta de Jesus transcende essa justiça torta.
É a justiça de quem, exercitando os valores do Amor, enxerga no ofensor alguém que adoeceu espiritualmente e precisa de ajuda.
Lembrando um problema atual, se alguém contrai a dengue, a família desdobra-se em cuidados e preocupações.
Se ele comete um erro, ou mostra-se impertinente, os familiares logo erguem uma barreira de ressentimento, conturbando a vida no lar.
Em última instância, a justiça que transcende a dos fariseus é exercitada com a compreensão de que cada qual está num estágio de evolução.
Não podemos exigir das pessoas mais do que podem dar.
Essa postura jamais será um favor feito a alguém, mas o mínimo indispensável em nosso próprio benefício.
Se desejamos conservar a integridade espiritual e um ambiente harmônico, onde estivermos, é preciso desarmar o espírito com o perdão.
É um exercício maravilhoso na arte de amar, capaz de eliminar a mágoa, o ressentimento e o rancor, que tão mal nos fazem.