por Dora Incontri,
publicado em 20 fev 2012 http://doraincontri.wordpress.com/
Um documentário feito por alunos de Comunicação Social numa Universidade do Rio Grande do Sul, defende o direito dos ateus e fala sobre a discriminação sofrida por eles. Abaixo, uma reflexão que fiz a partir desse vídeo!
Documentário Além do Ateu e do Ateísmo - Beyond the Atheist and Atheism pela Universidade de Santa Cruz do Sul, RS
A mais recente vitimização social é a dos ateus – declaram-se perseguidos, incompreendidos e discriminados. Em primeiro lugar, quero deixar claro, que reconheço a legitimidade do ateísmo e obviamente advogo o direito de cada um crer ou descrer, da maneira que lhe aprouver, pois nada há de mais sagrado do que a liberdade de pensamento.
Entretanto, um dos trabalhos a que me dedico é o do diálogo inter-religioso e, poderia então acrescentar, o diálogo entre religiosos e não-religiosos… Afinal, o eixo para uma sociedade mais justa, plural e fraterna, está na convivência pacífica e respeitosa entre diversos pontos de vista. Nesse sentido, portanto, temos que analisar o que nos afasta e o que nos aproxima do diálogo, e isso deve ser feito por todos os interlocutores.
Antes de mais nada, um diálogo tem que ser honesto – o que chamo de honesto inclui não fazer generalizações simplistas. Por exemplo: religiosos dizerem que ateus não têm moral. Ou, do outro lado, ateus se referirem a Deus numa generalização pobre de seu conceito.
Explico-me: o que esses ateus do vídeo acima estão combatendo (ou dizem descrer) é um deusinho bem vulgar, antropomórfico, que anda pulando na boca de pastores fanáticos. Não é de jeito nenhum o Deus de Platão, Aristóteles – que eram pagãos. Não é o Deus de Avicena – que era islâmico, nem de Maimonides, judeu. Não é nem mesmo o Deus de São Tomás de Aquino, cuja doutrina é oficial da Igreja Católica. É o deus dos inquisidores, mas não é o Deus de Giordano Bruno, que foi queimado pela Inquisição, mas aceitava um Deus cósmico, infinito.
O primeiro grande engano é considerar que Deus é apenas um assunto de religião. Desde antes do advento do cristianismo, e mesmo muito tempo depois da laicização da sociedade, Deus sempre foi um tema recorrente na filosofia. Descartes, Spinoza, Leibniz – mais recentemente, Bergson, Buber ou Scheler, têm concepções de Deus diferentes entre si e muito distantes desse deusinho punitivo, vingador, que manda os ateus para o inferno, esse deusinho que pregam os seguidores de um Edir Macedo da vida.
O outro grande engano é dizer que a ciência é ateia. A ciência não pode se pronunciar – e nem se pronuncia – nem contra, nem a favor de Deus, pois Deus nunca foi seu objeto de estudo e pesquisa. O que há são concepções de universo e de mundo que se afinam ou não com uma dada concepção de Deus. E o que há são cientistas ateus e cientistas não-ateus. Eis tudo. E a ciência moderna, nascida justamente com os grandes astrônomos, Copérnico, Galileu, Kepler, Giornado Bruno, não nasceu ateia, porque esses pensadores consideravam que conhecer o cosmos, estudar as constelações, enxergar a ordem matemática imanente no universo, era uma forma de decifrar Deus, seu projeto cosmológico inteligente e articulado. Há cientistas contemporâneos célebres que também são teístas – veja-se Albert Einstein e Max Planck.
Portanto, não dá para discutir Deus honestamente de forma maniqueísta:
De um lado: cientistas, filósofos, pensadores progressistas, defensores da liberdade, personalidades “fortes” que não precisam de apoio “sobrenatural” – ATEUS.
Do outro lado: religiosos, fanáticos, conservadores, inquisidores, ingênuos, que precisam de uma muleta, que se assemelha ao Papai Noel e ao coelhinho da Páscoa – TEÍSTAS (considerando-se teísta qualquer um que tenha uma concepção de Deus).
Assim como não dá para fazer o inverso, demonizar os ateus e santificar os religiosos!
O caso é que a intolerância, o dogmatismo, o patrulhamento ideológico são males humanos, e vicejam nos teísmos, nos ateísmos, em todos os ismos do mundo. Citemos o exemplo de dois autores mencionados no vídeo em questão: Freud e Marx. Os dois, que deram contribuições históricas importantes e algumas delas ainda atuais, eram campeões da intolerância. Freud costumava excomungar violentamente os que se afastavam algum milímetro da ortodoxia psicanalítica. Veja-se o caso de Jung. Marx não era menos autoritário. Bakunin (ateu como Marx, mas um dos líderes do pensamento anarquista) reclama do patrulhamento ideológico a que os anarquistas foram submetidos durante a 2º Internacional. E não podemos nos esquecer o que aconteceu com eles (os anarquistas) na Revolução Soviética – massacrados todos pela intolerância bolchevique.
Com tudo isso, estou apenas querendo demonstrar que se há religiosos fanáticos e intolerantes, há também ateus que agem do mesmo modo. Basta estar no poder.
E por falar em poder, devo mencionar a seguir o reduto da intolerância ateia no mundo contemporâneo: o mundo acadêmico. Se na mídia, temos pastores vociferando contra “pessoas sem Deus no coração”, nas universidades, intelectuais que ousam pensar Deus, mesmo de forma filosófica, são estigmatizados e congelados. Eu mesma teria uma série de episódios a narrar, mas não interessa aqui citar nomes e instituições. Poderia falar de concursos, análise de publicações, pareceres sobre livros etc… Em que minha posição de espiritualista, teísta, espírita, foram razões explícitas ou implícitas de discriminação e exclusão. Ou seja, se entre a população que ovaciona Padre Marcelo e Edir Macedo, há um discurso demonizando ateus, entre a população acadêmica – sobretudo na área de Filosofia (a despeito de filósofos de todos os tempos terem discutido Deus), há uma atitude de ridicularização em relação aos que propõem um conceito teísta de vida. É tão desrespeitoso e dogmático, alguém se arrogar o direito de dizer que outra pessoa vai para o inferno, porque pensa diferente, quanto considerar uma argumentação filosófica séria e honesta a favor da existência de Deus, como uma patacoada imbecil sobre o coelhinho da Páscoa!
Aliás, mencionei a intolerância de Marx e Freud e poderia citar a de Nietzsche e de Heidegger, dentro dessa mesma linha de raciocínio. O problema de todos esses autores foi justamente esse (e seu pensamento é ainda predominante na academia): eles não se limitaram a propor uma visão de mundo sem Deus, matar Deus, arrancar Deus da sociedade e do coração humano. Eles pretenderam desqualificar qualquer pessoa que tenha uma visão teísta do universo: para Marx, os que acreditam seriam alienados; para Freud, seriam neuróticos (a religião é uma espécie de patologia psíquica); para Nietzsche e Heidegger, seriam seres fracos, que não têm a coragem suficiente de assumir que a vida não tem sentido, que o universo não tem causa… Convenhamos que não é nada favorável ao diálogo e à convivência pacífica com o outro, qualificar-se a sua posição filosófica ou religiosa, como alienação, insanidade, fraqueza de caráter – em suma, burrice!
Outro aspecto mencionado no vídeo é a Ética: é possível uma Ética sem Deus? Obviamente que sim. Qualquer pessoa que conheça um pouco de Filosofia sabe que há diversas proposições éticas que não se ancoram num conceito de Absoluto – por exemplo, a ética marxista, a ética utilitarista, o humanismo ateu etc…
Mas, daí a dizer que os princípios que esses cidadãos estão defendendo – como fraternidade, igualdade, respeito à vida ou coisa que o valha – não estejam vinculados a nenhuma religião… É um desconhecimento completo de História. Tomemos o conceito de igualdade, por exemplo, esse mesmo defendido pelo marxismo e por todo o ideário dos Direitos Humanos e das Constituições: antes de Jesus, que, para mim não é Deus, mas por acaso também não era ateu, não havia em nenhuma sociedade, em nenhuma filosofia, em nenhuma corrente religiosa, a ideia explícita de igualdade entre todos os seres humanos, independente de religião, casta, raça… Essa igualdade proposta pelo cristianismo (apesar de não praticada por muitos cristãos) deriva de um conceito de filiação divina. Embora no decorrer dos séculos, a ideia tenha sido secularizada e até usada na bandeira da Revolução Francesa, não se pode negar sua raiz cristã. Aliás, um ateu honesto como André Comte-Sponville admite que, embora ateu convicto, há uma impossibilidade histórica para ele, de pensar fora da civilização cristã, na qual cresceu e foi educado, e de que carrega os valores intrinsecamente. Então, embora os ateus digam que não, eles podem adotar e praticar valores que estão enraizados sim numa tradição religiosa, de que descendem. É impossível negar a própria origem. Então, melhor é respeitá-la, assim como eles pedem respeito pela sua posição.
Nota: Quem quiser conhecer mais profundamente minha posição a respeito de Deus, recomendo meu livrinho de bolso: Deus e deus, recentemente reeditado pela Editora Comenius.
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